sexta-feira, 25 de maio de 2012

DADOS SECRETOS DAS ILICITUDES SÃO LIBERADOS

ZERO HORA 25 de maio de 2012 
 
DOCUMENTOS SECRETOS
Decisão do STF libera divulgação de dados

Motivo de polêmica na CPI do Cachoeira, os inquéritos relativos às operações Vegas e Monte Carlo da Polícia Federal, em poder da comissão, poderão se tornar de conhecimento público. Numa decisão tomada ontem, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), liberou os deputados a veicular as informações a seu critério.

De acordo com o ministro, os únicos dados que deverão permanecer em sigilo são as interceptações telefônicas. Lewandowski também resolveu encaminhar à CPI cópia integral de mídias relativas a escutas telefônicas oriundas da Operação Monte Carlo. O material foi recebido da 11ª Vara Federal de Goiânia. Conforme o ministro, as gravações estão em nove DVDs e abrangem cerca de mil horas de conversa.

Para facilitar apurações de eventuais vazamentos das interceptações telefônicas, Lewandowski determinou que o material tenha identificação digital. Dados sigilosos encaminhados anteriormente à CPI vazaram. Uma sindicância foi aberta para apurar a responsabilidade pelo vazamento. Diante de recentes pedidos de investigados ao STF para garantir acesso às provas antes de depoimentos na CPI, Lewandowski ressaltou que o sigilo não alcança os integrantes da comissão nem os investigados.

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - É desta justiça que o Brasil precisa. Ao invés de apoiar as articulações para esconder fatos, ela apoia a apuração das ilicitudes e suas circunstâncias.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

O EXEMPLO DO SUPREMO

 

EDITORIAL ZERO HORA 24/05/2012

 

Se havia alguma dúvida sobre a legitimidade e a conveniência de divulgar salários de servidores públicos com os nomes dos respectivos beneficiários, o Supremo Tribunal Federal extinguiu-a na última terça-feira, ao anunciar a publicação integral da folha de pagamento dos 11 ministros e dos demais servidores da Corte. Trata-se de um marco decisivo na interpretação da Lei de Acesso à Informação, recentemente aprovada. O STF não apenas está dizendo que os contribuintes têm o direito de saber quem são e quanto ganham os servidores como também está mandando aos demais órgãos públicos de todos os poderes o recado de que a regra da democracia é a transparência, ficando eventuais sigilos como exceção.

Compreende-se o constrangimento de funcionários habituados com a cultura do segredo que vigora desde sempre no país. Mas o Brasil não está inventando nada: impulsionadas pelas facilidades da internet, democracias mais evoluídas já divulgam há bastante tempo informações detalhadas dos gastos públicos, incluindo-se aí as despesas com pessoal. Lá e aqui, o conceito é claro e insofismável: informações públicas pertencem aos cidadãos e não aos governantes, chefes de poderes ou servidores.

As resistências ainda existentes precisam ser vencidas. Na própria sessão do Supremo que decidiu pela transparência absoluta, foi debatida a proposição de um dos ministros para que apenas o número da matrícula do servidor fosse divulgado ao lado do seu salário, de modo que o contribuinte interessado tivesse que investigar a quem pertenceria o registro. Esta hipótese foi descartada, pois a legislação especifica que as informações colocadas à disposição do público devem ser claras e facilmente acessadas. Mascará-las com códigos e barreiras burocráticas seria um subterfúgio inadmissível.

Espera-se que os gestores públicos de todas as instâncias da federação entendam e sigam a orientação da Suprema Corte.

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Numa democracia, o Poder Judiciário é o poder encarregado de aplicar, respeitar e fazer cumprir as leis de forma coativa. É o Poder Judiciário que deve supervisionar, dar exemplo e exigir que os demais respeitem e cumprem as leis e as condutas de moralidade. É o Poder Judiciário que detém a função precípua da aplicação coativa das lei e é o poder moderador na harmonia entre os poderes. Se o Poder Judiciário não dá exemplo, é benevolente, diverge nas suas decisões, é indeciso, é moroso, é corrupto, se submete aos políticos, se omite, trata com descaso as questões de ordem pública e ainda desrespeita as leis, como exigir que os demais respeitem as leis, sejam probos e cumpram seus deveres constitucionais para com a nação e para com a pátria? 

Graças ao Poder Judiciário, representado pela sua maior corte, o STF, que a Lei do Acesso vai ser cumprida e respeitada pelas demais instâncias do Judiciário e pelos demais Poderes. Estão de parabéns os Ministros do STF. É desta justiça que o Brasil precisa.

SALÁRIOS ÀS CLARAS: PODERES SEGUEM EXEMPLO DO STF


País rompe com a cultura do sigilo - PAULO GERMANO, zero hora 24/05/2012


Uma lei que exige transparência do poder público, autoridades dispostas a enfrentar a cultura do sigilo divulgando salários do funcionalismo e uma comissão que vai trazer à tona episódios de tortura e morte durante a ditadura. Vinte e sete anos após a redemocratização, o Brasil vive momento inédito de debate sobre seus problemas atuais e do passado.

Transparência é a palavra da moda no Brasil.

Em um país que viveu quase 500 anos de regime arbitrário, com a democracia avançando há pouco mais de duas décadas, as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e da presidente Dilma Rousseff despertaram um debate sem precedentes. Em nome da transparência, criou-se a Comissão da Verdade, aprovou-se a Lei de Acesso à Informação e decidiu-se divulgar os salários no serviço público.

Ontem, só no Rio Grande do Sul, Assembleia Legislativa, Ministério Público e Tribunal de Contas anunciaram que vão revelar a remuneração dos seus servidores – sejam eles graúdos ou modestos. São decisões que vieram na esteira da medida do STF, que, na terça-feira, decidira divulgar seus salários. Emparedados, o Senado e a Câmara deliberaram fazer o mesmo.

– Estamos caminhando para uma transparência democrática que, no meu entender, é inédita no país – avalia Roberto Romano, professor de Ética Política da Unicamp.

Mas Romano lembra que, em contraponto a tudo isso, já surgiu na Câmara um movimento contrário: a imprensa descortinou um grupo de diretores procurando brechas legais para sonegar informações – especialmente na divulgação de notas fiscais. A tentativa de manobra apenas ilustra uma cultura que, modelada durante séculos de arbitrariedades, reluta em aceitar a palavra da moda.

– Ainda estamos todos acostumados ao sigilo e ao uso corrupto do sigilo, bem ao estilo do absolutismo – afirma Romano.

Não quer dizer que você, leitor, seja um totalitário em potencial. Significa apenas que o Brasil convive com um regime democrático desde o final dos anos 80 – nações como os Estados Unidos, por exemplo, usufruem da democracia há mais de 200 anos. O resultado é que, no Brasil, o governo federal ainda centraliza 70% do bolo tributário, os Estados pouco decidem sobre os próprios investimentos e os partidos são dominados por dois ou três caciques.

Controle nos gastos

– Somos uma democracia recente que terá novos avanços. Mas estamos presenciando a criação de mecanismos administrativos importantes. É possível vislumbrar um controle maior dos gastos públicos – analisa Ingrid Sarti, professora de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Quando um professor entra em greve pedindo aumento salarial, segundo Ingrid, a população tem o direito de saber quanto ele ganha de fato. Hoje, não é possível buscar esse dado com precisão, já que os contracheques incluem bonificações, triênios, funções gratificadas. Essas informações serão claras a partir de agora. Diz o historiador Marco Antonio Villa, da Universidade Federal de São Carlos:

– Isso tudo é uma vitória da cidadania. Mas a maior transparência é outra: é a que consegue, se não eliminar, domar a corrupção. Ainda não é o que estamos vendo.

ENTREVISTA - “Precisamos de uma reforma estrutural”

José Arthur Giannotti, professor de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP)

Para o filósofo José Arthur Giannotti, transparência é algo bem mais profundo do que as recentes medidas da presidente Dilma Rousseff e do Supremo Tribunal Federal.

ZH – O Brasil avança para uma fase mais transparente?

Giannotti –
A onda de transparência é nítida, mas ela se contrapõe ao aumento das relações obscuras entranhadas na política. Todos vão saber quanto os servidores recebem, mas a relação do Carlinhos Cachoeira com o poder ainda é um túmulo de obscuridade. A CPI do Cachoeira ergue a bandeira da transparência, mas o que vemos é um trabalho incessante pela manutenção da obscuridade. Desse jeito, a transparência vira uma farsa.

ZH – Como uma mudança seria viável?

Giannotti –
Não temos uma política democrática para tornar as coisas transparentes. De um lado vem a denúncia, mas do outro vem um poderoso setor político impedindo a transparência. Precisamos de uma reforma estrutural para levar transparência às licitações, à forma como ministros são escolhidos, às políticas governamentais. Você acha que uma estrutura burocrática de 40 ministérios pode ser transparente?

ZH – A divulgação dos salários dos agentes públicos é um avanço?

Giannotti –
Pode ser um avanço, mas depende do que virá depois. Se virar uma caça às bruxas por qualquer desigualdade que se perceba, isso é péssimo.

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Graças a quem a Lei do Acesso está sendo respeitada? Graças ao Poder Judiciário representado pela sua maior corte, o STF, que a Lei do Acesso está sendo cumprida pelas demais instâncias do Judiciário e pelos demais Poderes. Na democracia, o Poder Judiciário é o poder  encarregado de aplicar, respeitar e fazer cumprir as leis de forma coativa. É o Poder Judiciário que deve supervisionar e dar exemplo para que os demais respeitem e cumprem as leis.  É o Poder Judiciário que detém a função precípua da aplicação coativa das lei. Se o Poder Judiciário não dá exemplo, é benevolente, diverge nas suas decisões, é indeciso e moroso, é corrupto, se submete aos políticos, se omite e ainda desrespeita as leis, como exigir que os demais respeitem as leis, sejam probos e cumpram seus deveres para com a nação. Estão de parabéns os Ministros do STF. É desta jusitça que o Brasil precisa.


sábado, 5 de maio de 2012

O VALOR DE UM CONVERSA TELEFÔNICA

ALI MAZLOUM - JUIZ FEDERAL EM SÃO PAULO, ESPECIALISTA EM DIREITO PENAL, PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL - O Estado de S.Paulo - 05/05/2012

Diante dos seletivos vazamentos do produto de interceptações telefônicas ocorridos no curso das investigações criminais, reveladas a partir da Operação Monte Carlo, que apuram as atividades de Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira, é de indagar qual seria o valor das conversas captadas com autorização judicial. Em outros termos, tirante o alto teor explosivo do material exposto às luzes midiáticas, os diálogos constituem prova no processo penal?

Impende dizer que uma conversa telefônica regularmente captada não tem a natureza de prova em si mesma, mas constitui um meio de obtenção de prova. Assinale-se a diferença: os meios de prova são os elementos de que o julgador se pode servir para formar sua convicção acerca de um fato, ao passo que meios de obtenção de prova são instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher meios de provas.

Para o Direito, a espetacularização de uma operação policial não muda conceitos. Nesse sentido, a classificação do crime em material, formal e de mera conduta se revela importante mecanismo de valoração da prova. Assim, por exemplo, uma conversa telefônica envolvendo cocaína não comprova o tráfico de drogas. Falta a materialidade do delito. A partir das conversas cabe à polícia diligenciar com o fito de apreender a droga. O diálogo não é a prova, mas apenas um meio para a sua obtenção.

Se essa conclusão se aplica às conversas captadas entre investigados, o que dizer, então, quando os interlocutores fazem referências a uma terceira pessoa? Tais conversas nem de longe indicam envolvimento do terceiro. Uma conversa sobre terceira pessoa, ilhada, sem amparo em lastros investigativos, continuará sendo apenas uma conversa, nem mais, nem menos. Um plus deveria vir em auxílio ao diálogo. Caso contrário, o terceiro continuará sendo apenas um terceiro alheio ao apuratório e o objeto da conversa, mera bazófia - um indiferente penal.

Calha registrar, pois, que nos crimes materiais, em que se estabelece um resultado naturalístico, a consumação só ocorre com a verificação do evento natural, conforme exemplificado acima com a negociação de drogas. Nos crimes formais prevêem-se ação e resultado, mas a consumação independe do evento natural, como são exemplos a concussão, o tráfico de influência, a exploração de prestígio ou a quadrilha. A constatação de tais delitos se fará mediante incursões das investigações para além das palavras ditas ao telefone.

Por último, nos delitos de mera conduta não se exige nenhum resultado naturalístico, contentando-se o tipo penal com a simples atividade do agente - ação ou omissão (exemplos: violação de domicílio, alguns crimes de palavra, etc.). Nessa hipótese, e apenas nessa hipótese, poderá a própria conversa telefônica configurar eventualmente o crime por consubstanciar o corpus delicti, tal qual a ameaça feita ao telefone (embora saibamos da impossibilidade de se deferirem escutas nos delitos menos graves, como esse).

A interceptação, como meio de obtenção de prova, serve para nortear o trabalho policial, nada mais que isso. Para que tenha efetividade uma investigação não pode ficar limitada à exibição impactante de material sigiloso. Deve sair a campo para demonstrar que no mundo real existem fatos que correspondem ao teor das conversas interceptadas. Caso contrário, ter-se-á mera destruição de reputações sem nenhuma condenação criminal.

O bombardeio diário com diálogos telefônicos picantes exibidos não mais pelos meios convencionais de imprensa apenas, mas por toda a blogosfera, cujo alcance é praticamente ilimitado, pode ser devastador caso o Judiciário tenha a "coragem" de entender inexistentes provas materiais dos propalados malfeitos. A expectativa criada na população é de veredicto condenatório, cadeia!

Terão os juízes independência para decidir tecnicamente na arena forense do clamor público? Haverá magistrados dispostos a verem o seu nome lançado no patíbulo da ignomínia? Espero que sim!

Em Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt desvela com muita propriedade regimes que usam o Estado como mera fachada externa para representar o país perante o mundo democrático. Direitos fundamentais, como a presunção de inocência, a ampla defesa, o devido processo legal, são utilizados como estandarte, atrás do qual vigem verdadeiros métodos de incrível perversidade, com tratamentos degradantes e julgamentos sumários. Esse não é o meu país!

Todos querem um Brasil mais justo, mas não à custa de ilegalidades, do degredo de inocentes, do aviltamento de direitos civis. É preciso serenar o clamor das ruas provocado pelas malsinadas conversas ao telefone. Aguardem-se as provas e contraprovas, o direito inalienável de defesa, o curso natural do processo democrático. A democracia vale muito mais que qualquer conversa telefônica!

É deletéria a acentuada preocupação da opinião pública exclusivamente com a figura do agente, materializada em grande medida por meio de suas conversas interceptadas. Com isso vai ganhando terreno o nazi-fascista Direito Penal do Autor, em detrimento do fato, do Direito Penal do Fato.

Repita-se: as escutas telefônicas, utilizadas parcimoniosamente, constituem instrumentos de extrema valia no processo de produção da prova, mas não podem ser transformadas em rótulos de culpa colados na testa dos interlocutores. Queremos para nós mesmos o que estamos servindo aos outros? Então, vamos às provas!

Em tempos de prejulgamentos, em que todos querem ser juízes e carrascos ao mesmo tempo, é preciso não só reservar um dos ouvidos para ouvir o outro lado, como também é indispensável conhecer concretamente as provas dos autos, se é que elas existem!

quarta-feira, 2 de maio de 2012

COLEGISLADORES

Conrado Hübner Mendes, doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo e em Ciência Política pela USP - O Estado de S.Paulo, 02/05/2012

Quando o STF invalida uma lei ou lhe dá nova interpretação, opositores ocasionais da decisão costumam alegar que o tribunal interferiu indevidamente na esfera legislativa. Não foi diferente no caso recente sobre antecipação do parto de fetos anencéfalos: ao reconhecer a constitucionalidade dessa prática, o STF teria invadido a prerrogativa do Congresso de elaborar normas jurídicas. O próprio ministro Lewandowski, em voto vencido, argumentou que "não é dado aos integrantes do Judiciário promover inovações no ordenamento normativo como se parlamentares eleitos fossem".

Essa crítica se inspira numa leitura tradicional de dois princípios adotados pela Constituição brasileira: a separação de Poderes, arranjo pelo qual se busca prevenir o abuso de poder; e a democracia, ideal político que almeja institucionalizar um governo do povo. Cartilhas de Direito ensinam que a fusão dos dois princípios, na prática, confere ao Parlamento eleito, e só a ele, a função de legislar e aos outros dois Poderes, o papel subordinado de aplicar o Direito. Portanto, segundo essa sabedoria convencional, um tribunal que legisla romperia simultaneamente com esses dois princípios - primeiro, porque não lhe caberia legislar; segundo, porque não é eleito pelo povo.

O controle judicial de constitucionalidade, é bem verdade, complica um pouco essa fórmula simples e didática. Afinal, permite que juízes revoguem uma lei quando a julgam incompatível com o texto constitucional. Para nos tranquilizarem, aquelas cartilhas dizem que tal ato de insubordinação ao Parlamento é necessário em nome da supremacia da Constituição. Tal atividade de controle, defendem, não faria do tribunal um "legislador positivo", que cria normas, mas apenas um "legislador negativo", que se limita a vetar certas normas emanadas do Congresso. Estaria preservada, assim, a integridade da separação de Poderes e da democracia.

A má notícia é que essa equação, aparentemente tão bem ajustada na teoria, não funciona. Não por má-fé de juízes, mas por simples impossibilidade prática. E enquanto usarmos tal equação para observar o controle judicial de constitucionalidade, essa função continuará a ser uma das mais mal compreendidas das democracias contemporâneas.

O STF, no exercício dessa competência, legisla o tempo todo, com maior ou menor visibilidade e intensidade. Algo comum, diga-se, a toda Corte Constitucional no mundo. Seja quando revoga uma lei e explica seus parâmetros ao Congresso, quando estabelece a interpretação válida de uma lei e elimina outras interpretações plausíveis, ou quando diagnostica a omissão do Legislativo e ocupa o vazio normativo, está atribuindo significado à Constituição, uma atividade essencialmente construtiva. Sem eufemismos, cria normas jurídicas e regula os atos dos outros atores políticos. Não tem outra escolha: é isso que lhe pede a Constituição e é o que, bem ou mal, vem fazendo, tanto nos casos mais polêmicos, como o da anencefalia, quanto em outros de menor saliência.

A divisão de trabalho entre tribunal e Congresso não obedece a uma fórmula estanque, oscila conforme os movimentos da política. Esse é um fenômeno dinâmico observado em qualquer regime democrático que, como o brasileiro, reserva espaço relevante ao controle judicial de constitucionalidade. Portanto, à medida que o STF se expande na política brasileira, processo gradual e contínuo há pelo menos 15 anos, torna-se mais urgente perdermos a inocência sobre a natureza do seu papel.

Nossa Carta Magna e nossa prática institucional aboliram o monopólio da legislação. A função de criar normas é compartilhada, não exclusiva do Congresso. Não há que perguntar, pois, se o STF pode legislar. Ainda giramos em falso ao redor dessa pergunta e desperdiçamos muita energia crítica nesse custoso debate. Melhor começarmos a perguntar quando, como, quanto e por que o STF deve legislar. Obviamente, não deve legislar como se "parlamentares eleitos fossem", para usar as palavras de Lewandowski. Seu papel é fazê-lo a conta-gotas, de forma cirúrgica e oportuna, em face das ações e, sobretudo, das omissões injustificadas do Legislativo.

A superação do mito de que aplica passivamente a Constituição e o reconhecimento dessa forma especial de colegislar geram maior responsabilidade para o STF. Embutido em tal responsabilidade há um dever mais rigoroso de prestar contas e de construir uma jurisprudência transparente que forneça orientações normativas inteligíveis para os casos futuros. Essa é a maior dívida pública do tribunal, mas só poderemos cobrá-la adequadamente se evitarmos aquela confusão conceitual.

A constatação de que há um "STF legislador" ao lado do "STF juiz" dá outra magnitude à Corte. É nessa perspectiva que se podem entender os desafios da gestão do ministro Ayres Brito, que herda uma agenda explosiva ao tomar posse na presidência do STF. Entre suas várias atribuições, caberá a ele definir, em negociação com os outros ministros, os casos que entram na pauta de julgamento e os que devem esperar. Esse poder de agenda precisa ser exercido com coragem e sensibilidade para os prejuízos sociais oriundos da demora em cada caso.

Não fará bem à saúde política do STF, por certo, deixar que o mensalão prescreva. Apesar de não envolver complexidade jurídica extraordinária, as pressões externas o tornam o caso mais delicado na história recente do "STF juiz". Mas isso não pode ofuscar as responsabilidades do "STF legislador", que promove impactos mais profundos no ordenamento jurídico. Nessa pauta específica, grande quantidade de casos antigos continua à espera de solução - uma combinação eclética que reúne de grandes temas de direitos fundamentais a temas com amplas consequências na economia nacional. Embora lhe reste pouco tempo na presidência, já que se aposenta no final do ano, Ayres Britto tem a oportunidade de deixar uma marca histórica na jurisprudência da Corte. A aprovação unânime do programa de cotas nas universidades, na semana passada, deu uma amostra disso.