segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

JUSTIÇA DOS EUA - UMA MINORIA VAI A JULGAMENTO E QUASE NENHUM CHEGA À SUPREMA CORTE

Nos últimos 30 anos, Justiça nos EUA é pró-mercado - Por Rafael Baliardo entrevistando Edward Purcell - Consultor Jurídico, 13/02/2011

"Os pontos de vista sociais e políticos na Justiça exercem influências diferentes dependendo do caso e dos tipos de processo, e isso muda de tempos em tempos", afirma o professor Edward A. Purcell Jr., uma das mais respeitadas autoridades sobre a história da Suprema Corte e do sistema federal de Justiça dos Estados Unidos, ao comentar pesquisa feita pelo The New York Times que apontou aumento no número de casos em que interesses corporativos foram preservados na Suprema Corte do país, sob a presidência do juiz John G. Roberts Jr., indicado pelos Republicanos.

Segundo Purcell, nos últimos 30 anos os tribunais do país se moveram politicamente para a direita, com uma postura pró-mercado, como reflexo do peso da maioria conservadora. "Isso cria um contexto um tanto restritivo para aqueles que pretendem processar grandes corporações e instituições governamentais. Também pode ser restritivo em termos de direitos civis, em casos de ações de classe e ações conjuntas", afirma, mas ressalva que a análise das decisões não depende só da ideologia dos juízes. "Quando se trata de Justiça, a abordagem nunca é tão simples."

Em entrevista exclusiva à revista Consultor Jurídico, em seu espaçoso gabinete na New York Law School, no sul de Manhattan, em uma tarde gelada de janeiro, no rigoroso inverno nova-iorquino, Purcell também falou sobre a lentidão da Justiça norte-americana. Segundo ele, a conciliação tem sido uma ótima alternativa para não ter que esperar por tanto tempo o reconhecimento de direitos.

Lá, a maior parte dos processos (entre 96% e 98%) acaba em primeira instância, não chega aos tribunais, quanto mais à Suprema Corte. "Se você é autor da ação e sabe que o réu pode fazê-lo esperar cinco anos para receber seu dinheiro, a melhor coisa a fazer é negociar, abrir mão de parte do que avalia ser seu direito, para antecipar a resolução. Em outras palavras, trocar dinheiro por tempo."

Autor de diversos livros sobre a história e aspectos do funcionamento da Justiça nos Estados Unidos, o professor Purcell interessou-se por questões relacionadas à lei quando estudava a história americana do século 20. Ele passou a pesquisar sobre o que é chamado nos EUA de "realismo legal" (conjunto de teorias que exploram a natureza e a estrutura das leis, surgidas no país na primeira metade do século 20).

"Minha pesquisa sobre o realismo legal me fez perceber que eu estava lidando com questões que eu não entendia completamente e então percebi que precisava aprender sobre Direito", revelou posteriormente em uma nota biográfica, ao comentar sua carreira.

Sua incursão por temas jurídicos em Harvard, nos anos 1970, além de o conduzir à prática da advocacia, o levou também a concluir o seu primeiro livro A crise da teoria democrática (sem tradução para o português), em que examina a história intelectual dos Estados Unidos e sua relação com as leis e a organização política do país. A obra recebeu o prêmio Frederick Jackson Turner Prize, da Organização de Historiadores Americanos.

Durante a conversa com a ConJur, Purcell falou, entre outros temas, sobre o peso da política no funcionamento da Suprema Corte dos EUA. "Os pontos de vista sociais e políticos na Justiça exercem influências diferentes dependendo do caso e dos tipos de processo, e isso muda de tempos em tempos", explicou. "Quando se trata de Justiça, a abordagem nunca é tão simples."

O professor falou ainda sobre o papel da imprensa americana ao cobrir a Justiça, avaliando a dificuldade do jornalismo especializado na área. "Reportar casos como os que estão na Suprema Corte, de forma pertinente, inteligente e informativa, é um trabalho muito duro", disse.

Edward Purcell recebeu o título de "Joseph Solomon Distinguished Professor" da New York Law School, uma das mais antigas escolas independentes de Direito do país, onde atualmente dá aulas. Foi professor de História americana na Universidade de Missouri, de onde se licenciou depois que seu interesse em Direito e Justiça o conduziram à Universidade Harvard, onde atuou como bolsista "Charles Warren Fellow" na área de História Legal dos EUA.

Leia a entrevista:

ConJur — Seu interesse em questões legais e constitucionais surgiu quando o senhor estudava a história dos Estados Unidos do século 20, mais especificamente quando pesquisava as teorias conhecidas como “realismo legal”. Seu primeiro livro, A crise da teoria democrática: naturalismo científico e o problema do valor (The Crisis of Democratic Theory: Scientific Naturalism & the Problem of Value, University Press of Kentucky, 1973) tem origem a partir desses estudos iniciais, certo? O senhor poderia falar mais sobre a concepção de sua obra de estreia?

Edward A. Purcell Jr. — Essa é uma pergunta complicada porque estamos falando de 30, 35 anos atrás. De fato, eu estudava a história americana do século 20 e acabei interessado em questões relacionadas à história intelectual do país. É confuso tentar resgatar isso tudo assim de memória, mas imagino que parte do interesse surgiu com ideias que vieram à tona quando me voltei à questão dos direitos civis aqui nos Estados Unidos. O assunto chamou minha atenção quando examinei o surgimento e a consolidação de um conjunto de conclusões e afirmações de natureza moral que culminaram na ascensão do movimento por direitos humanos no país. Meu interesse era avaliar sobre que bases os cidadãos faziam esse tipo de asserções morais e éticas, de onde saíam tais juízos de valor que resultaram na luta por direitos civis.

ConJur — O que conseguiu constatar?


Edward Purcell — Havia um paralelo entre essa questão e outros períodos de nossa história intelectual. Refiro-me aos anos 1920 e 1930, com a ascensão do nazismo e fascismo na Europa. Nesse contexto, a maioria dos americanos defendia a democracia e a justificava como sendo o “bem”, ou seja, o que é certo e correto acima de qualquer dúvida, e o nazismo como sendo simplesmente o “mal puro”. E esse é um raciocínio simples de fazer, elementar. Eu estava interessado nesse padrão de pensamento e certezas categóricas. Principalmente, considerando um cenário anterior aos anos 40 e 50, quando teve lugar o proclamado relativismo, o Darwinismo, a própria ciência em si. Enfim, eu queria entender como uma visão objetivista, científica — em que você assume a neutralidade para estudar um objeto neutro — reage quando confrontada com algo que parece claramente “mal”, como o fascismo e o nazismo, e como conciliar essas duas visões de mundo e posturas. Esse foi o tipo de problema histórico com que me deparei. E com o meu primeiro livro tentei explorar a raiz da questão.

ConJur — Em dezembro do ano passado, o The New York Times publicou o resultado de uma pesquisa financiada pelo próprio jornal e empreendida por estudiosos da Northwestern University e da Universidade de Chicago, na qual foram analisadas 1.450 decisões da Suprema Corte do país desde o ano de 1953. De acordo com os pesquisadores, a porcentagem de casos relacionados a interesses comerciais cresceu durante a presidência do juiz-chefe John G. Roberts Jr., assim como o número de casos em que os interesses corporativos saíram preservados, sobretudo nos processos de interesse da Câmara de Comércio do país. O senhor aborda este tema em seu segundo livro, Litígio & Desigualdade: a Jurisdição Federal na América Industrial, 1870-1958 (Litigation & Inequality: Federal Diversity Jurisdiction in Industrial America, 1870–1958, Oxford University Press, 1992). Como avalia o resultado do estudo publicado?

Edward Purcell — Não me surpreende o resultado do estudo. Não é exatamente uma novidade que os tribunais do país, nos últimos 30 anos, se moveram politicamente para a direita, sustentando uma visão pró-negócios, uma postura pró-mercado. O que cria um contexto um tanto restritivo para aqueles que pretendem processar grandes corporações e instituições governamentais. Também pode ser restritivo em termos de direitos civis, em casos de ações de classe e ações conjuntas. O resultado do estudo parece confirmar a expectativa. Atualmente, isso apenas reflete o peso da maioria conservadora na composição da Suprema Corte. Isso, claro, pode ser problemático em inúmeros aspectos. Mas essa influência não é tão simples assim. Em primeiro lugar, nenhum juiz admitiria que sustenta certo posicionamento político ou que representa qualquer um dos dois partidos, tampouco reconheceria que sua visão de mundo interfere em suas decisões. Pelo menos, isso é muito raro. Ao contrário, os juízes sempre insistem que suas decisões se baseiam na lei e na metodologia. Isto é, que priorizam um tipo de originalismo e textualismo em suas decisões, o que, em certos aspectos, me parece que há alguma verdade nisso.

ConJur — No Brasil, a tensão política se faz presente no Judiciário, sobretudo considerando o nosso Supremo Tribunal Federal, sua influência e o papel que desempenha. Mas não como ocorre nos EUA, em que qualquer cidadão sabe que há uma ala conservadora e outra liberal na Suprema Corte, sendo os juízes que compõem a primeira indicados por presidentes republicanos, e os segundos, por democratas. Aqui, além de a polarização ser mais acentuada, ela é mais aberta. Quando o presidente Obama indicou Elena Kagan ao cargo de juíza associada, não era segredo que a estratégia era diminuir a influência conservadora na Suprema Corte e ampliar o número de juízes favoráveis às políticas de sua administração.

Edward Purcell — A complexidade e a sutileza do sistema de Justiça americano abriga a tensão entre o textualismo, a lei, o método e questões de ordem política. Os pontos de vista sociais e políticos na Justiça exercem influências diferentes dependendo do caso e dos tipos de processo, e isso muda de tempos em tempos. O peso desse tipo de influência varia. Muitas vezes, o processo é suficientemente claro, dispensando maiores interpretações. Ou, ainda, a lei é explícita, não havendo dúvidas sobre sua aplicação. Mas essa simplicidade nem sempre ocorre. É muito difícil um caso chegar à Suprema Corte. Sobretudo nos últimos 100 anos, senão em toda a história do tribunal. Somente casos muito complexos, em que os argumentos de ambos os lados parecem ser legítimos e juridicamente corretos, representando um verdadeiro impasse legal. Especialmente, agora no século 21, nenhum processo relativamente simples chega à Suprema Corte, ao menos que um tribunal de primeira instância ou de apelação tome uma decisão muito controversa. De forma geral, a Suprema Corte só aceita julgar casos que sejam tão complexos, que ambas as partes consigam legitimar argumentos e sustentá-los amplamente em termos legais.

ConJur — A complexidade do processo, e não somente uma suposta orientação ideológica ou política, explicaria o resultado da pesquisa também?

Edward Purcell — A pergunta a ser feita é: quando há argumentos jurídicos legítimos de ambos os lados, como as decisões são tomadas? Que outros aspectos influenciam? Algumas vezes pode ser um caso de má interpretação das leis, em outras, o desempate ocorre quando um dos pontos de vista se impõe. O que quero dizer é, quando se trata de Justiça, a abordagem nunca é tão simples como “vou decidir assim porque simpatizo com esses caras ou com tal ideia”, mesmo que os juízes possam avaliar questões jurídicas levando em consideração um conjunto de valores e crenças, seja o que pensam sobre Deus, moralidade, ideias sociais e econômicas.

ConJur — Em seu livro mais recente, Originalismo, Federalismo e o Empreendimento da Constituição Americana — Uma Investigação Histórica (Originalism, Federalism, and the American Constitutional Enterprise — A Historical Inquiry), o senhor traça a evolução do federalismo através dos séculos e refuta a noção de que os fundadores dos Estados Unidos, para citá-lo, “cuidadosamente estabeleceram o equilíbrio constitucional entre os estados e o poder do governo federal”. Isso, em alguns aspectos, não contraria o que a maioria das pessoas pensa sobre a organização política dos EUA, sobre a questão da autonomia dos estados diante da influência da União?

Edward Purcell — Não creio. Esta não é propriamente uma ideia nova. Não sei se compreendo o que você quer dizer com “contraria” e se respondo sua pergunta desta forma, mas é justo pensar que os fundadores tinham, sim, uma preocupação com a autonomia dos estados, até onde podemos fazer afirmações sobre seus objetivos. Um dos meus argumentos é que não podemos simplesmente assumir que esta era uma questão central para eles. O que podemos dizer é que os fundadores pretenderam reservar aos estados algum caráter de independência e autonomia. Havia a preocupação para que os estados pudessem governar a si próprios e ainda assim criar um governo central que tivesse poder nacional. Os fundadores preocuparam-se com os dois aspectos, local e central, e, de certo modo, o conceberam. O problema é: onde está a linha divisória? E meu argumento é que não havia uma. Nem na Constituição nem em qualquer outro documento. Como grupo, eles não estabeleceram claramente uma linha divisória entre o poder local e nacional. Portanto, afirmar que eles “cuidadosamente estabeleceram o equilíbrio constitucional” entre os estados e a União é verdadeiro se você quer dizer que os fundadores criaram duas instituições distintas, o estado e a União, que deviam estabelecer alguma forma de relação duradoura uma com a outra e não poderiam jamais serem extintas. No entanto, se com “equilíbrio cuidadoso” você quiser dizer que tinham uma ideia concreta sobre o limite e a natureza do equilíbrio de poder entre os estados e o governo federal, então isto não é correto.

ConJur — Mas essa é uma questão recorrente no embate político no país. O Partido Republicano questiona a lei de reforma do sistema financeiro e a criação de um sistema público de saúde em nível nacional com base nesse argumento e, quase sempre, apela à redução do tamanho e dos poderes da administração federal com base na suposta intenção dos fundadores da nação.

Edward Purcell — Sim. A questão é que quando o país foi concebido, os fundadores estabeleceram uma nação de estados independentes que poderia agregar mais e mais estados, o que fizemos durante os séculos 19 e 20. Temos então um governo federal constituído por três poderes, e um desses poderes é o Congresso dividido em duas partes, com cada uma dispondo de certas atribuições e limites estabelecidos pela Constituição. Porém, como os poderes devem se relacionar um com o outro e quão longe cada um deles pode ir nessa relação, isso não foi claramente abordado. Também não ficou detalhado como, por exemplo, um dos poderes deve interagir com os outros dois ou como dois dos poderes interagem ou confrontam um terceiro. Por isso, não acredito que houve uma concepção de equilíbrio original. Mesmo em nível federal, não há uma ideia de equilíbrio além do entendimento que os três poderes estabelecidos seriam permanentes, inextinguíveis e capazes de fiscalizar um ao outro.

ConJur — Quer dizer, a Constituição não estabeleceu como devem interagir os três poderes e nem como se dá a atribuição compartilhada.


Edward Purcell — Exatamente. Por exemplo, as leis de comércio são a maior fonte de poder federal. Mas nunca esteve claro o que exatamente a cláusula de comércio [na Constituição] significava ou quão ampla deveria ser sua interpretação. Ao longo do tempo, seu entendimento mudou de muitas formas. Não apenas a cláusula comercial em si, mas o que chamamos de "Cláusula de Comércio Dormente”, que tratam do efeito que essa lei comercial prevista na Constituição exerce sobre o trabalho legislativo quando o Congresso faz leis sobre comércio. [Também conhecida nos EUA como "Cláusula Negativa de Comércio", são as diretrizes legais estabelecidas pela Suprema Corte que os tribunais consideram quando avaliam a extensão da Cláusula de Comércio do Artigo 1º da Constituição americana]. Isso nos leva de volta ao século 19 quando a Suprema Corte definiu termos constitucionais para orientar e limitar as leis feitas nos estados. Ou seja, até onde chega o que a Constituição estabeleceu de forma ampla e vaga? A questão é que a Suprema Corte não conseguiu, neste caso, especificar até onde essas leis “amplas e vagas” podem ir, como devem orientar o trabalho dos legisladores quando estes propõem novas leis. Os termos estabelecidos pela corte, nos caso da cláusula comercial, podem ser interpretados de formas diferentes. Os outros elementos que estabelecem a divisão entre os poderes e, também entre o nível federal e estadual, sofrem da mesma ambiguidade. Você não chega a lugar algum questionando “o que os fundadores intencionavam?” Eles simplesmente não tinham uma intenção original para estas questões.

ConJur — Eles tinham algumas preocupações e estabeleceram parâmetros para elas, certo?

Edward Purcell — Em alguns pontos, tinham uma intenção original, mas não lidavam com o tipo de problema que lidamos hoje. E, de fato, esses problemas devem ser pensados de forma pragmática e prática dentro de certos limites constitucionais. É evidente, por exemplo, que o governo federal não pode abolir um dos 50 estados. A autoridade do governo federal tem, portanto, limites em relação aos estados, assim como os estados têm de observar a Constituição ao se organizarem. Mas os termos dessa relação não foram detalhados. Isso é o que argumento em meu livro. Este é um assunto de extrema relevância aqui nos Estados Unidos, porque, nos últimos 25 anos, um grande número de pessoas tem chamado a si mesmas de originalistas e apresentam uma série de argumentos sobre essas questões, sobre a intenção dos fundadores da nação. Não se trata apenas de dizer que o originalismo tem uma série de incongruências analíticas, mas questionar a fonte sobre a qual ele se ampara. O argumento de que não se pode discutir certos aspectos das leis por contrariar a natureza original da Constituição apareceu depois da Constituição, não surgiu com ela.

ConJur — Qual é a maior peculiaridade do sistema de Justiça dos Estados Unidos? O que o torna diferente de outros países no mundo?

Edward Purcell — Em termos de comparação, não conheço o suficiente sobre outros sistemas legais. Uma das semelhanças é que, ao longo dos tempos, mais países têm adotado o modelo de uma corte suprema como instituição, com outro nome talvez, mas com a mesma ideia de que o processo judicial é a forma conhecida mais eficaz de resolver determinadas questões constitucionais. Suponho que os EUA exerceram e exercem alguma influência nesse sentido em outros sistemas jurídicos a partir de nosso modelo de Suprema Corte. O mesmo ocorre com o federalismo, que tornou-se um sistema de organização política relativamente comum. Muito depende de como você define “federalismo”, mas, em termos gerais, cerca de 2/3 dos países no mundo se organizam em alguma forma de sistema federal. Os modelos de federalismo adotados por outros países são diferentes em inúmeras formas, mas a ideia de unidades que desfrutam de um grau de independência, mas compartilham de uma união política é mesma. A União Europeia é um exemplo recente de como um grupo heterogêneo de países pode ir em direção a este sistema, embora seja um caso distinto por estarmos falando de nações autônomas e soberanas.

ConJur — Como avalia o trabalho da imprensa americana ao cobrir a Justiça? Como atuam as emissoras de televisão, os jornais, as revistas em termos de profundidade, imparcialidade e impacto junto à opinião pública?

Edward Purcell — Isso também é muito difícil de avaliar. Eu acompanho o New York Times e a qualidade do que fazem é bastante boa. Eles já tiveram correspondentes muito bons nessa área, especialmente na cobertura da atuação da Suprema Corte. O acompanhamento de casos é consistente e mantém uma boa regularidade. Eu vivi em outras cidades do país e, comparando como o NYT, a cobertura feita por outros jornais costuma ser menos ampla e menos informativa. Já a TV transmite algumas informações básicas, mas é muito irregular. Os canais de jornalismo da TV a cabo, definitivamente, não contribuem em nada em termos de se pensar seriamente sobre Justiça. De fato, o noticiário da TV a cabo piora as coisas. Às vezes, não posso deixar de concluir que os canais de jornalismo da TV a cabo nos Estados Unidos foram a pior coisa que nos aconteceu nessa área. É provavelmente um exagero de minha parte, mas o que quero dizer é que algumas coisas são realmente terríveis.

ConJur — O senhor se refere à polarização entre emissoras conservadoras e liberais?


Edward Purcell — Também. Parte do problema é que reportar qualquer tipo de coisa que ocorre em um tribunal durante um caso significativo é um trabalho complexo e não depende só de considerações acerca da lei e política. Em alguns casos, as especificidades de um processo podem ser muito interessantes em certo sentido e despertar a atenção da opinião pública, mas, em termos jurídicos, serem irrelevantes. Sem mencionar o apelo que o sensacionalismo e as personagens envolvidas exercem na mídia. Reportar casos como os que estão na Suprema Corte de forma pertinente, inteligente e informativa, é um trabalho muito duro.

ConJur — Como o senhor avalia a resistência do Partido Republicano em relação à reforma do sistema de saúde no país promovida pela administração do presidente Obama? Trata-se de uma avalanche de processos judiciais para tentar embargar a implantação de um sistema público de saúde nos Estados Unidos.

Edward Purcell — Em primeiro lugar, apoio a iniciativa de se criar um sistema público de saúde. A reforma deveria ser ainda mais ampla e consistente, mas, sem dúvida, é um passo importante na direção certa. O que provoca essa oposição irascível? Esta é uma fascinante pergunta empírica. É muito difícil compreender exatamente o que significa isso tudo, o que os opositores reivindicam, de fato. Eles alegam que os custos aos cofres públicos serão catastróficos e que os benefícios estabelecidos pelo sistema de Seguro Social [a previdência social dos EUA] e pelo Medicare [o plano de saúde do governo para idosos e cidadãos que se adequam a certos critérios prestabelecidos] serão arruinados. Alguns dos críticos da reforma têm ainda falado sobre socialismo, sobre esta ser uma reforma de natureza socialista. É evidente que não existe qualquer compreensão sobre o que é socialismo e o que ele representou, e esta me parece o pior e mais baixo tipo de polêmica política. E claro, há preocupações legítimas em termos de orçamento, sobre que efeitos a expansão do sistema público de saúde irá causar ao sistema em vigor, o Medicare, sobre como conceder benefícios há 40, 50 milhões de pessoas e controlar os custos. Estas são questões sérias e legítimas. Mas, ao mesmo tempo, a disputa política e as coisas que estão sendo ditas, essas críticas todas passam ao largo de preocupações mais sérias.

ConJur — Como o senhor avalia a eficiência e a rapidez da Justiça nos EUA, em termos de custos e tempo médio até o encerramento do processo?

Edward Purcell — Este certamente é um problema nos Estados Unidos assim como na maioria dos sistemas legais mundo afora, eu imagino. Considerando os recursos e a decisão final, podemos falar de anos. Três, quatro, cinco ou mesmo dez anos. Sabemos, empiricamente, que a maioria dos agravos não chega aos tribunais. São resolvidos pelas partes, de uma forma ou outra. As queixas que chegam à corte, não estou familiarizado com as últimas estatísticas — elas variam entre cada jurisdição — mas estão entre 96% e 98%. Destes, proporcionalmente, a maioria é encerrada com o acordo entre as partes perante o juiz, sendo que uma minoria vai a julgamento. Desta minoria, poucos chegam às cortes de apelação. E por fim, quase nenhum chega à Suprema Corte. É como a imagem de uma pirâmide, você já deve ter visto uma dessas imagens, com as queixas que terminam com acordos ocupando a base, seguidas pelas que vão a julgamento e, então, logo acima, os processos que tiveram recursos, e aí por diante, até o topo, com os raros casos que chegam à Suprema Corte. A maioria dos casos se resolve com acordos ou na primeira instância, mas uma das considerações a serem feitas é quanto tempo leva para que casos como estes se encerrem? Se você é o autor da ação e sabe que o réu pode fazer você esperar por cinco anos para receber seu dinheiro, a melhor coisa a fazer, em certas circunstâncias, é negociar, abrir mão de parte do que avalia ser seu direito, para antecipar a resolução. Em outras palavras, você troca dinheiro por tempo.

ConJur — Isso não acontece apenas por conta de o sistema ser lento, certo?

Edward Purcell — Certo. Eu explorei o tema em meu segundo livro, Litígio e desigualdade. Mesmo em casos em que podem se resolver muito rapidamente, que não levam muito tempo para serem concluídos, a espera e o atraso podem vir a desempenhar um papel determinante e acabam por redefinir o caráter e os limites da ação. Desse modo, a forma como você vai lidar com o tempo, sua flexibilidade em esperar e fazer ou não concessões é que acaba por determinar o perfil do processo. O atraso não é mera questão em termos de espera e prazos.

ConJur — Mas em questões complexas você pode esperar por anos?

Edward Purcell — Sim, este também é um problema aqui nos EUA. Tanto que instituições como a Suprema Corte têm criado programas de incentivo à resolução de casos via mediação e acordo. Uma série de outras formas para se resolver questões legais têm sido implantadas, sobretudo nos últimos 20, 30 anos. Por exemplo, é muito comum que as partes assinem contrato de prestação de serviços com juízes aposentados ou com advogados experientes, a fim de evitar os tribunais e agilizar o procedimento perante a lei. Há vantagens e desvantagens, claro. Você pode economizar tempo e dinheiro assim. Porém, muitas vezes, a simplificação pode levar a erros, a negligenciar certos aspectos do processo, que passam despercebidos. Pode ocorrer que uma das partes saia, eventualmente, prejudicada. Não é sempre que o resultado obtido na negociação corresponde ao que ocorreria em um tribunal, em frente ao juiz.

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