quarta-feira, 10 de outubro de 2012

AS TRAJETÓRIAS DE JOAQUIM BARBOSA E JOSÉ DIRCEU

REVISTA ÉPOCA. 05/10/2012 23h35

A ascensão do juiz que condenou um político poderoso – e a queda dramática do poderoso condenado


DIEGO ESCOSTEGUY, COM MARCELO ROCHA, MURILO RAMOS E FLÁVIA TAVARES


O JUIZ
O ministro Joaquim Barbosa durante o julgamento do mensalão. Óculos de Gepeto e postura altiva diante dos fotógrafos (Foto: Sérgio Lima/Folhapress)

O Supremo Tribunal Federal da República Federativa do Brasil paira sobre as leis do tempo. No Olimpo de 11 semideuses da Justiça brasileira, o relógio marca sempre 15 horas. Está lá, no canto oposto ao plenário, em caracteres digitais vermelhos. Não adianta perguntar a Zeus por que nem como: seja segunda ou quarta-feira, de manhã ou à noite, a hora é a mesma, o tempo é o mesmo. Cabe aos homens adaptar-se a ele – ou acabar enquadrados por ele. Dos 11 ministros, nenhum é tão severo com os mortais que transgridem o tempo do Supremo quanto Joaquim Benedito Barbosa Gomes, o relator do mensalão. Nos últimos sete anos, ele se encarregou de preparar a exemplar punição dos semideuses da política que ousaram rasgar as leis protegidas pelo Supremo, organizando o mais intrincado esquema de corrupção já descoberto no país. Após 30 sessões épicas, nas quais o relógio manteve-se às 15 horas e, nesse privilegiado espaço fora do tempo, aplicaram-se condenações duras aos partícipes da organização criminosa, dois agudos toques de campainha anunciaram, na tarde da quarta-feira 3 de outubro, a 31ª sessão – aquela em que o semideus Joaquim fatalmente desferiria o golpe final no semideus José Dirceu de Oliveira e Silva, o “mandante” do mensalão.
O JULGADO
O ex-ministro José Dirceu durante um evento, na semana passada. Vaidoso, ele já fez implante nos cabelos, hoje desgrenhados (Foto: Zanone Fraissat/Folhapress)

Todos os presentes levantaram-se. Fez-se silêncio. Os 11 ministros assomaram ao plenário em fila indiana. “Por favor, sentemo-nos”, disse o presidente da corte, ministro Carlos Ayres Britto, dando início à sessão. “Sejam todos bem-vindos a esta nossa Casa de Justiça. Em regime de continuidade de julgamento, apregoo a Ação Penal 470.” Ação Penal 470 é o nome que se dá, na Casa de Justiça, ao processo do mensalão. Ato contínuo, entraram em cena os fotógrafos designados a registrar o ritual. Apertaram-se num cantinho ao fundo do plenário. Suas poderosas lentes sobrepuseram-se umas às outras, apontadas como bazucas a um só alvo: Joaquim. A sucessão incessante de cliques ressoou pelo plenário, maculando a voz do ministro Carlos Ayres Britto, que recapitulava mansamente a sessão anterior. “São 38 réus, já conhecidos, já nominados em sessões anteriores”, leu Britto, por obrigação. “Faço um retrospecto um pouco alongado da última sentada do julgamento.” Britto prosseguiu, os demais ministros aprumaram-se para o início dos trabalhos. Menos Joaquim. Joaquim já estava pronto. Imóvel. Os fotógrafos aguardavam. Súbito, Joaquim levou o braço esquerdo, coberto delicadamente com a capa preta de ministro do Supremo, ao calhamaço branco de seu voto, erguido na vertical por um apoio de leitura. Clique, clique. Sua mão esquerda folheou lentamente algumas páginas. Clique, clique, clique. Seus olhos miúdos, escondidos atrás dos óculos arredondados ao estilo Gepeto, moveram-se quase imperceptivelmente, perscrutando os papéis. Joaquim devolveu o braço esquerdo ao espaldar. Clique, clique, clique, clique. A estranha sinfonia de cliques durou cinco minutos, tempo que se permite aos fotógrafos registrar o julgamento. Agora, apenas a voz de Ayres Britto ocupava o plenário. Todos os presentes mantinham-se em obsequioso silêncio. O barulho da Esplanada dos Ministérios – seus carros, suas pessoas, sua azáfama – não penetrava no Supremo. Ayres Britto finalmente disse: “Senhor ministro relator, Joaquim Barbosa, concedo a palavra a Vossa Excelência para o prosseguimento de seu voto”. O tempo dos homens marcava 14h44. O tempo do Supremo, 15 horas. Chegara o momento de os dois tempos se encontrarem.


***
Capa da edição de ÉPOCA para assinantes (Foto: ÉPOCA)

A 814 quilômetros dali, em Vinhedo, no Estado de São Paulo, uma grande casa de campo no bucólico condomínio Santa Fé sintonizava a TV Justiça. O televisor estava ligado numa saleta contígua à sala de jantar, onde a produtora Evanise Santos, um jornalista e uma historiadora assistiam às palavras de Joaquim. Do lado de fora da casa, na varanda que circunda a construção, estava José. Como de hábito, ele preferia não assistir ao julgamento. À sua frente, avistavam-se as colinas verdes de Vinhedo, em cores de tranquilidade e paz. Ninguém sabe o que se passava na cabeça de José naquele momento. Nem em qualquer momento, reconheça-se. José nunca diz – a ninguém – o que pensa de verdade. Nem mesmo à namorada, Evanise, ou aos assessores e companheiros políticos que estavam na sala ao lado, aqueles poucos que haviam conquistado um lugar em sua intimidade, embora pouco soubessem dela. Naquele momento, José certamente não tinha pensamentos de paz e tranquilidade. Estava tenso. Emagrecera nos últimos meses, deixara o cabelo crescer desgrenhado, descuidara-se – logo ele, vaidoso a ponto de fazer implantes capilares e mandar importar cremes especiais, na esperança de subtrair alguns anos ao rosto de 66. Estava abatido como um prisioneiro sem banho de sol. Desde que o julgamento começara, havia dois meses, José, seguindo orientações dos assessores e do bom-senso, não saíra da casa de campo. Para um animal político como ele, as colinas de Vinhedo são grades de ferro. Para seus padrões, tornou-se um ermitão. Sua comunicação com o mundo vinha sendo precária. Dava-se por torpedos, e-mails, Skype. (Celular pega mal na casa de campo.) Quanto mais o julgamento se prolongava, mais derrotado José se sentia. “Queria poder falar, fazer o combate, sair logo daqui”, dissera ele recentemente a um companheiro de partido.

O que José deseja é impossível. E ele sabe. Naquele momento, José sabia isto: o que lhe restava de vida política, após sete anos de lutas com a verdade do mensalão, extinguia-se com o voto de Joaquim condenando-o por corrupção ativa, como o mandante do esquema criminoso. Sabia também que, apesar da possibilidade de alguns votos contrários, a tese de Joaquim prevaleceria no plenário do Supremo. Era só uma questão de tempo – tempo de o Supremo alcançar o tempo dele, transfigurando definitivamente o herói de 1968 no anti-herói de 2012, um personagem épico cuja ascensão e queda dá sentido ao arco político percorrido pelo Brasil nas últimas décadas. A José, talvez sobrasse apenas sonhar com as boas lembranças, talvez voltar a seus anos de esperança, em 1968.




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